ONDE PÁRA O TEMPO

Se me importo de contar? É evidente que não. Lembro como se fosse hoje. Acordei ao som da voz do locutor da rádio. Na altura gostava de acordar com as notícias e saber o que se passava no país e no mundo, tal qual dizia o outro. Agradava-me sair de casa com a sensação de controlar o trânsito, o tempo e as novidades. Eu e esta minha mania obsessiva por controlar tudo e mais alguma coisa. Pelo menos isso manteve-se na mesma. Mas desculpe-me não foi isso que me perguntou, lá estou eu a desviar-me do que realmente queria contar.

Naquela manhã estranhei a voz do locutor que, numa voz esganiçada, debitava inúmeros disparates numa desconexão que fez com que o meu espreguiçar fosse interrompido a meio. “Coitado. Esta vida de jornalista dá cabo de qualquer um“ lembro-me de ter pensado. Sim. Foi isso exactamente que pensei, tal era a angústia e a ansiedade que a voz dele me estava a transmitir. “Roubaram-nos o tempo. Roubaram-nos o tempo” repetia ele num histerismo só comparável à minha ex-mulher, sempre que o penteado não estava de acordo com o que desejava.

Sentei-me na cama ainda estonteado e entrei em estado de escuta activa, que é como quem diz, ouvi com ouvidos de ouvir. Faltava-nos o tempo!!!! Mas que raio!!! O homem está doido. Como é que é possível? Parecia que assim do nada o dia tinha amanhecido sem tempo. Nem sol nem chuva, nem calor, nem frio. Sol e Lua encontravam-se pela primeira vez. Vento, chuva, raios de sol e flocos de neve olhavam-se desconfiados. Afinal sempre tinham trabalhado sozinhos, não sabiam trabalhar em equipa. Perderam-se semânticas e conceitos. Do dia e da noite já poucos se lembram. Agora sem tempo, deixavam de ser necessários. Se quer que lhe diga, também estava cansado de tantas histórias de mau tempo ou bom tempo. A expectativa de como estaria o dia seguinte e ansiedade que isso nos provocava. Se quer que lhe diga, era uma perda de tempo. Perdeu-se o tempo e a nossa classificação sobre ele.

Mas não pense que ficou por aqui. Também os ponteiros tinham desaparecido dos relógios e os números tinham-se evaporado dos calendários. Os números agora perdidos sem ponteiros entreolhavam-se prestes a terem crises de identidade. As agendas nada mais eram que páginas em branco onde as acções se perdiam sem tempo. Reuniões, consultas, aulas, saídas e entradas, ali perdidas sem rumo apenas por falta de tempo. Desorientavam-se as sincronizações. Procuravam-se os anos, os meses, as semanas os dias e as horas, e nem os segundos escaparam a esta busca quase que desesperada. Procurou-se sem nunca se encontrar. Suspendiam-se cimeiras, reuniões e guerras e, até, os jogos olímpicos foram cancelados. Desorientam-se pessoas, plantas e animais.

Como é que eu me senti? Perdido como todos os outros. Incrédulo até. Afinal também eu era um ”tempodependente”. Se quer que lhe diga, até tenho uma teoria em relação ao assunto. O tempo não foi roubado. Até porque se assim fosse, ou tinham pedido resgate ou, depois de tanta investigação, tinham descoberto os delinquentes. Não. Ouça o que eu lhe digo. O tempo fugiu. Acredito que esteja numa qualquer ilha paradisíaca rodeado de sol e tequilas. Cansou-se, fartou-se e escafedeu-se. Ninguém me tira da cabeça que foi isso que aconteceu.

E tu o que fazes com o teu tempo?

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